Um Abismo nos Separa

Em memória de Rafal Lemkin

 

O fato é que não percebi o desvio. Avenida mal sinalizada. Claro, deu pra notar que a via estava em obras, uma estação de metrô ou algo assim. Uma estrutura de concreto, muitos cones. No carro estávamos eu, Alberto e Magno. Talvez o GPS estivesse desatualizado, talvez estivéssemos distraídos demais pelo cenário. Prédios modernos de aço e vidro refletiam edifícios históricos. Um monumento em cada canto.

O pequeno carro alugado caiu em um buraco. Naquela fração de segundo em que a surpresa foi maior que o horror, lembro de ter pensado: “um abismo bem no meio da avenida!? Na maior economia Europa!? Morreremos”.

Alguns minutos depois, contudo, estávamos inteiraços às margens da vala. O que não faz um cinto de segurança!? Não tínhamos arranhões nem hematomas. O carro pegou fogo. Formou-se uma confusão ao redor. Bombeiros e polícia chegaram rápido. A via foi interditada. Impossível recuperar os documentos, ficou tudo no carro. Também não adiantava dar muitas explicações à polícia. De um jeito ou de outro, eles cuidariam de tudo. País desenvolvido. O carro estava segurado e bastava. Além disso, não falávamos alemão. Melhor caminhar de volta ao hotel, procurar a embaixada e recuperar os passaportes. Andávamos cabisbaixos tentando elaborar o acidente, mas decidimos não apontar culpados. Aos poucos o espírito da viagem se apoderou de nós outra vez. Íamos observando os edifícios históricos e as pessoas nos cafés com o deslumbramento do olhar estrangeiro.

Uma construção em estilo clássico nos chamou a atenção. A ampla fachada era composta por seis pares de colunas dóricas, encimado por um frontão triangular decorado em alto relevo com cenas de batalhas. Um memorial por todas as vítimas das guerras e das tiranias. As portas estavam abertas. Entramos.

O interior era um grande salão imerso na penumbra. No centro, uma mãe agarrava angustiada e angustiantemente o filho adulto, esquálido e faminto, semi-morto. As figuras deformadas pelo sofrimento envolviam-se por um manto em farrapos como a buscar proteção. A escultura era uma Pietá moderna no sofrimento desolador da guerra.

O silêncio compunha a escultura e aumentava o desespero. Bem em cima abria-se uma claraboia no teto de pé direito alto. Um único facho de luz iluminava mãe e filho imobilizados de pavor. Aquela luz, que se dissolvia na escuridão, parecia ser a única esperança deles.

Todos ali permaneciam em silêncio, havia respeito. Um lamento surdo e profundo ecoava contra os genocídios. Uma jovem fotografava a escultura. Usava óculos de aros vermelhos grandes, como estava na moda. Seus cabelos ondulados, os lábios carnudos, sua atitude absorta e reflexiva, como se não houvesse nada mais importante que fotografar o lugar, me fascinaram. Usava calças jeans justas em uma silhueta esbelta, a camisa branca de pettit poa vermelho deixava transparecer o contorno dos seios. O casaco, ela mantinha amarrado à cintura para facilitar os movimentos com a câmera.

Ora ela desaparecia na sombra do salão, ora se deixava iluminar pela luz da claraboia. Fiquei observando seu balé de vestal. Aproximei-me. Dava para ouvir o barulho abafado do obturador. Cheguei mais perto, ao ponto de ver o brilho de seus olhos castanhos, mas ela não me notava. Tirou mais algumas fotos e saiu.

Quando deixamos o lugar, me invadiu uma sensação de não pertencimento, como se não tivesse o direito de estar vivo. Como se eu fosse menos humano que aquelas pedras abraçadas. Como se a indiferença e a beleza daquela mulher tivessem me aniquilado e me mandado para algum lugar no limbo, onde não se está nem vivo nem morto, onde não há nem sofrimento nem gozo. Onde não somos. Caminhávamos calados quando Alberto quebrou o ar vítreo nos isolava:

– Não falar a mesma língua dos outros é como não existir para eles. As pessoas não prestam atenção em nós.

– Pode parecer esquisito, mas acho que morremos… – Magno deixou escapar um riso vazio, como dos loucos.

Fez-se um silêncio ameaçador. Uma serpente imóvel esperando para dar o bote. Para mim, a morte é um sono sem sonhos. Quem acredita em vida após a morte diz que há um túnel de luz. Sempre aparece alguém conhecido para nos guiar. Dizem que o mundo espiritual é lindo. Na maioria dos relatos de experiência de quase morte não se sente medo, mas um bem estar imenso.

– Porra! Nós morremos! – Magno se descontrolou. Agarrou-se comigo. Puxava meu casaco, chorava aos soluços.

– Magno! Que porra é essa!? Espíritos não se tocam! Presta atenção! Tu não sentes minhas mãos!? – Agarrei-o pelos cabelos, chacoalhando-lhe a cabeça. Ele pareceu recobrar a lucidez. Sentamos em um café.

– Uma água e três expressos, por favor. – Meu inglês era sofrível. Não morremos, estávamos ali adoçando os cafés e bebendo água em copos de vidro bem sólidos.

– Tudo isso é criação da mente. Nós estamos criando essa realidade. Na verdade, estamos mortos. – Magno tinha o olhar vidrado, ainda chorava.

– Cadê o túnel de luz!? – Alberto gargalhava. – Então, não apareceu ninguém para nos levar? Nem anjos nem demônios? Falha do céu! Alooôoo! Esqueceram de mandar os aanjoooos! Magno, se liga! Se estivéssemos mortos, a minha avó Betinha já teria vindo me buscar!

– Perdemos a primeira luz. Quando estamos muito desorientados, é comum perder a primeira luz. Passou tão rápido que não conseguimos perceber o túnel. Estamos vagando.

A voz cavernosa de Magno parecia o ribombar distante de trovões anunciando a tempestade. Minha medula regelou. Estremeci. Senti um peso no estômago. Olhei pro céu acinzentado. A tarde estava muito fria. Me sentia deslocado para outra realidade. Um relógio de rua marcava 13h37min, 7ºC. Não tinha fome. Acho que espíritos não têm fome. Eu pensava na vestal do templo, fotografando mãe e filho desesperados. Me veio à mente uma passagem do Evangelho de Lucas: “entre vocês e nós há um grande abismo, de forma que os que desejam passar do nosso lado para o seu, ou do seu lado para o nosso, não conseguem”.

 

Janela

Estou sentado ao lado de uma pequena janela de vidro. Em cada fila de duas cadeiras, há uma janela. Já viajei durante muito tempo no corredor, quando me esticava para ver lá fora. Há algum tempo consegui sentar junto à janela. É maravilhoso, o vento bate no meu rosto, assanha os cabelos e resseca meus olhos. Quando esfria demais ou quando há muita fumaça sou obrigado a fechar a janela e me distrair com algo aqui dentro. Esqueço a janela. Aqui, não há assentos marcados, vamos nos acomodando como calha.

O trem anda ora rápido, ora devagar. De quando em quando, para nalguma estação. Vejo as pessoas vendendo e comprando, o movimento agitado nas grandes plataformas, a emoção das chegadas e das despedidas, os acenos. Alguns homens, mulheres e crianças carregam bagagens imensas. O movimento tedioso nos pequenos lugares, um cachorro boceja, um homem agasalhado espera sozinho.

As paisagens jamais se repetem. Há campos floridos e desertos, há névoas densas, há noite estrelada sobre uma imensa planície. A lua clara ilumina as montanhas ao fundo. Muitos dormem, muitos dormem. Eu tento acordá-los, mostrar a beleza dalgum lugar, um cervo que corre. Muitas vezes me exasperei tentando mostrar um imenso lago, o belo, o fantástico, o absurdo. Tudo passa pela janela deste imenso trem que é como o tempo, não se detém.

Com a idade, decidi aproveitar mais a viagem. Não incomodo mais as pessoas querendo lhes mostrar isso ou aquilo. Recostado na cadeira, silencio ante o mundo que se transforma à minha janela. Fico maravilhado com o que vejo. Algumas vezes é sublime; outras, terrível. Silencio. Aos poucos vou descobrindo que é impossível mostrar a paisagem para alguém. É impossível. Cada um vê diferente.

Umberto Eco

Umberto Eco me ensinou muitas coisas. É uma referência que continuarei escutando com atenção. 
Como é bom ler o seu sarcasmo e irreverência frente ao establishment! Manifestava um anticlericalismo sempre desconcertante e divertido, o ateísmo mais natural e humano que já testemunhei – o de Saramago tinha um rancor que não podemos identificar em Eco. Era um ateísmo sem ranço, o de Eco.
Eco sabia ser comicamente inteligente, usava como ninguém a ironia. Apontava as fragilidades humanas mais evidentes e escondidas, justamente aquelas que nos recusamos a enxergar, como a dizer: não devemos nos levar tão a serio, nem a nós mesmos nem à humanidade!
Acho que Eco, ele mesmo, era alguém entre Guilherme de Baskerville e Baudolino. Sempre profundo, criativo e divertido, capaz de moldar o mundo, a seu bel prazer, com algumas invencionices.
Sem dúvida alguma, o mundo ficou menor! Grande perda!
Vá em paz, Eco! Deus seja louvado!

Caminhada

O velho passou devagar, os ombros curvos, olhava para baixo. Andava lentamente, quase um autômato. Não mexia a cabeça, tinha um quê de autismo no olhar fixo para baixo. Parecia procurar obcessivamente um obstáculo, um buraco, uma saliência, um tropeço no caminho irregular. Seu semblante era como se antevisse a queda iminente, o cotovelo quebrado, ou a bacia, o que seria pior, o hospital. Não suportaria o hospital, jamais como paciente, os hospitais eram para os médicos. Carregava uma bengala, mas não se apoiava nela. Era muito complicado caminhar se apoiando na bengala. Melhor simplesmente prestar atenção, prestar atenção obcessivamente e andar devagar.

A bermuda e a camisa brancas pareciam dizer que algum dia, há muito tempo atrás, ele teria sido um tenista. Precisava ter sido há muito tempo, o velho não tinha mais nada da agilidade de um tenista, nem o físico, nem o olhar amplo que espera o saque do adversário. Se foi tenista foi por pouco tempo, um intervalo, uma vontade, quem sabe. Se foi tenista foi nos intervalos dos plantões, entre uma cirurgia e outra. Se foi tenista era porque os tenistas, como os médicos, também usavam branco, e ele jamais abrira mão do branco. Se foi tenista foi apenas no estilo elegante e porque o clube ficava a duas quadras do hospital. Talvez ele quisesse emular dos tenistas a agilidade que nunca teve. Os sapatos também eram de tenista, sapatos brancos com meias finas beges, a única peça que escapava do branco. Não estava suado, a calva ligeiramente úmida, os poucos cabelos restantes bem presos na cabeça, apenas alguns fios que não se desarranjavam jamais.

O velho caminhava quase no meio da rua, não disputava espaço com os carros porque era domingo. O asfalto pouco movimentado parecia-lhe mais seguro que a calçada de pedra portuguesa. Em alguns minutos, alcançou a calçada no outro lado do quarteirão. Parou. Fez um grande esforço para subir a calçada alta. Esperou um pouco, calculou a força, ergueu a perna direita e apoiou-se na bengala. Os músculos retesaram, ele pareceu pular, um pulo de pulga apenas com a perna esquerda. Voilá! Conseguiu subir a calçada, ainda conseguia subir a calçada. Continuou olhando atentamente o chão, esquadrinhava o espaço de cada passada.

Na entrada do edifício, o porteiro lhe esperava atencioso como sempre:

– Como foi a caminhada, Dr. Alceu?

O velho parou. Olhou para cima pela primeira vez, procurando um rosto. Esperou um pouco, como se tentasse lembrar ou adivinhar o nome do porteiro.

– Não caí.

Vértice

Dobrei uma esquina
Perdida de mim mesmo
De um lado o que nunca fui
De outro, o que não serei
Ali na esquina eu vejo
Um pouco de tudo que não sou nem serei
É ali, no vértice de mim mesmo, que eu paro
Sem poder prosseguir

Como uma águia de pedra
Minhas asas majestosamente
Abertas
São pesadas demais
Para além do real
São verdadeiras demais
Concretas demais
Jamais conseguirão voar

Em algum lugar nessa esquina
Há uma semente latente
Que firmará raízes nesse chão
Dali nunca sairá
Mas pode brotar
– Quem a aguará?
Crescerá uma árvore
Que nunca foi nem será
Sobre a árvore pousará uma águia de pedra
Imponente como a verdade
Viva, imóvel e, de algum modo,
Inteiramente falsa.

Nagibe de Melo Jorge Neto
Fort., 16/03/2012

Livros, muitos livros: uma antibiblioteca inteira

The writer Umberto Eco belongs to that small class of scholars who are encyclopedic, insightful, and nondull. He is the owner of a large personal library (containing thirty thousand books), and separates visitors into two categories: those who react with “Wow! Signore professore dottore Eco, what a library you have! How many of these books have you read?” and the others — a very small minority — who get the point that a private library is not an ego-boosting appendage but a research tool. Read books are far less valuable than unread ones. The library should contain as much of what you do not know as your financial means, mortgage rates, and the currently tight real-estate market allows you to put there. You will accumulate more knowledge and more books as you grow older, and the growing number of unread books on the shelves will look at you menacingly. Indeed, the more you know, the larger the rows of unread books. Let us call this collection of unread books an antilibrary.

Nassim Nicholas Taleb, O Cisne Negro, citado no Brain Pickings.

Amigos

Encontrar os amigos da faculdade é encontrar o passado cheio de promessas e riscos, distante e tortuoso. É encontrar o momento exato da aposta, toda a ansiedade, o dinheiro espalhado na mesa, o medo, mas vemos tudo isso de uma perspectiva segura, quando já sabemos o resultado do jogo. Nada é ganho, nada é perdido. É como olhar fotografias antigas, meio amareladas com alguma coisa de saudade, surpresa e agradecimento. Vemos todos ali, tão diferentes da foto, mas os mesmos. O que nos faz os mesmos? O que nos faz tão próximos?

Sentamos apressados depois dos abraços, os sorrisos largos. A política caiu sobre a mesa dominando a conversa, os mesmos interesses, algumas desilusões, os mesmos valores, quase os mesmos ideais. Já sabíamos das nossas trajetórias, algumas dificuldades, mas fiquei imaginando como é estranho que tenhamos tão pouco espaço no reencontro para a vida íntima e pessoal. Como estão os filhos? E o casamento? Parece que quanto mais juntos, mais distantes e, ainda assim, um genuíno prazer com a presença uns dos outros, talvez mais que prazer, um conforto acalentador. Uma presença que não se deixava sequer sentir. Não houve um átimo de silêncio. O ritmo frenético da conversa abafava a presença, que era apenas um fundo imperceptível. Como o som do baixo na banda de jazz, estabelecia a cadência e a segurança de podermos expressar nossas opiniões e divergir, exagerar os pontos de vista. Abríamos as mãos e elevávamos o tom de voz. Ninguém precisava ser politicamente correto e podíamos ensaiar teorias e discordar, não seríamos julgados, não ali, não entre nós. Acho que é bem esse o conforto de encontrar os velhos amigos. Sermos aceitos e compreendidos para além da primeira impressão, quase sem restrições.

De repente, estava de volta aquela inocência da faculdade e dos horários sem aula, uma pretensão muito pretensiosa de um dia alcançar o que, talvez hoje saibamos, jamais alcançaremos. E os filhos? Estão grandes, o tempo passa rápido. Ainda somos os mesmos? Não sei, ninguém sabe, mas alguma cumplicidade histórica parece nos dizer que podemos confiar um no outro e não ser mal interpretados mesmo que sejamos absolutamente contestados. E estava de volta a velha competição alcóolica de todas as sextas. Outra cerveja! A competição masculina idiota e non sense completamente instalada e os problemas do mundo prestes a serem resolvidos.

Não, agora estava completamente claro que esses problemas jamais serão resolvidos e que nossa contribuição é tão limitada que chegaríamos a nos envergonhar daqueles sonhos sonhados nos bancos da faculdade, a não ser pelo fato deles terem nos levado até ali. Quando estamos entre amigos perdemos alguns pudores e nos damos o direito de competir mesmo sabendo da derrota certa. Outra cachaça. Outra!? Só mais uma! Essa cachaça é muito boa! Alguém chegou a dizer: vocês sabem que eu não bebo cachaça, mas hoje abro uma exceção! Abro uma exceção com louvor!

Até a ressaca foi a mesmíssima da faculdade. Não tenho mais idade para isso.

Começo

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Não sei por onde começar. Então, começo por qualquer lugar porque o fim é sempre um recomeço e os começos já trazem em si o fim.

Talvez o tempo seja um novelo, um linha bem enrolada, uma linha que, quando estirada, tem começo, meio e fim. O tempo é uma linha enrolada em torno de si mesma, muitos começos se juntam a muitos meios e fins. Tudo comprimido, retorcido, embaraçado.

Não sei por onde começar. Corto a linha e estico o tempo. O meu tempo. Eu escolho um começo e posso fazer dos fins novos começos. Hesito. Não sei onde cortar. Roço a tesoura ao longo do fio e, meio displicente, pressiono a lâmina. Pronto. Fez-se um começo.